TRILOGIA "O HIPPY, O GARÇOM ARGENTINO E O PIERRÔ"
O HIPPY E O SAX
Praia do Forte, finalzinho de
tarde e tomávamos um chopinho num
daqueles quiosques. A novidade é que
depois de muitos dias chuvosos, finalmente o sol, ainda meio tímido, resolvera
dar as caras e o assunto na mesa era justamente o fato de que o mês de novembro
em outras épocas era verão, com as tardes bem mais quentes. A conversa seguia
descontraída, entremeada de chope, peixe frito e observações sobre pernas
torneadas que desfilavam ali ao lado, no calçadão.
Na mesa vizinha, livrando-se da
mochila, um homem desperta a nossa atenção: rabo de cavalo, colete franjado,
colares e outros penduricalhos da era hippy, e além do mais, exibindo um sax a
tiracolo.
- Pessoal... século XXI... esse
cara não está um pouco atrasado, não...? - Observei.
- É que ele anda a pé... -Disse o Lauro, não perdendo a piada.
Papo vai, papo vem, o hippy foi
ignorado, ou melhor, o beatnik, pois
a aparência era sessentona. O papo prosseguia: “Como era mesmo o nome do
cavalo de Rocky Lane? E o do cachorro do Fantasma? Como se chamava o menino
ator de “Shane”? O Lauro matando todas,
aliás com ele, conversa de cinema era até covardia...
- Viu a lourinha que passou?
Nova, nova e já com celulite... Comentou o Carlão.
E nós, aposentados ou de folga,
filosofando e solucionando os problemas
da humanidade, enquanto a noite dava os primeiros sinais de aproximação.
Súbito, o "coroa" andarilho
achegou-se: “Boas tardes...!” Será que alguém pode ajudar-me ? Estou querendo,
ou melhor, necessitando vender este
saxofone...” Era um sax tenor de cor indefinida, meio azinhavrada
mas mostrava ainda alguma dignidade. Por onde deve ter andado esse sax... pensei.
O som era razoável, eu percebera de longe quando o falso hippy ameaçou algumas
notas. Falso sim!, onde já se viu andarilho com barba aparada e sapatos
engraxados?, pensava cá comigo.
- Vendo barato, disse com os
olhos mais honestos qu’eu já vira. “É que estou muito precisado...”
- Está com fome? - Fraquejei,
lembrando de meu tempo de estrada.
- Hoje tomei só o café da
manhã...
O Carlão convidou-o a sentar e
chamou o garçom. Antes de o peixe chegar, o Lauro, com certo jeito, fez o
apelo: “Não é pra compensar o lanche, não, mas dá pra levar um bolero, ou um fox? Um fundo musical para esse belo por-de-sol”. Falou, cantarolando e
apontando para o Sudoeste: “Nada além... nada além de uma ilusão...”
- Não, meu amigo. Não tenho mais condições
de tocar...
- Só umazinha...
- Sinto muito...Desculpe.
Diante da recusa mudou-se de
assunto. Ele continuou comendo o seu peixe com pão, participando da conversa e
do chope, e vez ou outra insistia, tipo “Pô... que legal se conseguisse vender
o sax... Poder seguir viagem. Na verdade já estou meio cansado, estou ficando
velho... Já fiz de tudo: Toquei em bares, em bordéis, lavei pratos na
Argentina...” E seguiu contando casos interessantes.
Enquanto acendia o cigarro com meu isqueiro Zipo, indaguei:
- E esse AA gravado no sax... é
de Alcoólicos Anônimos ?
- Não. Desculpe, nem me
apresentei, Astolfo Alvarenga, prazer!
Um pouco para ilustrar a
conversa, um pouco para matar saudades, perguntei o que havia acontecido de
mais absurdo em suas andanças.
- Muita coisa... muita coisa. Na
Patagônia, por exemplo, cheguei a trabalhar como segurança de um bordel.
Guarda-costas de cafetina... Trabalhava para comer.
- Comer o quê ? Perguntou o
Carlão, com um sorriso maroto.
- Tudo... E o andarilho soltou
uma risadinha. Mas absurdo mesmo foi a do trem, continuou: “Um dia, nos Andes,
nevando muito, caminhava na estrada margeando a linha férrea. Nisso, ao longe,
ouvi um apito de trem. Sem a mínima chance mas sem nada a perder,
fiz sinal de carona e...
- Não vai dizer que o trem
parou...!
- Não deu outra. Juro pela minha
mãesinha. Fui até o Chile.
O Astolfo deu um gole no chope e
prosseguiu. “Mas em termos de trabalho, o mais estranho foi o da carroça”.
- Foi carroceiro?!
- Exatamente. É uma história meio longa... Aliás, foi por conta desse batente que enjoei do Lexoton... Nunca mais
fui o mesmo.
- Lexoton...?
- Isso mesmo, é o nome do sax...
- Conta... conta. Mais chope aqui
pro nosso amigo... Empolgou-se o Lauro.
O Astolfo continuou...
"Eu estava no interior do
Paraná, pros lados de Terra Rica, quando caminhando numa estradinha secundária,
passou uma carroça e pedi carona. Ao
lado do carroceiro, alimentava uma prosinha simples, coisas da roça, passarinho,
galo de briga, quando o Jonas, analfabeto mas sábio por suas mazelas da vida,
observou:
- Vosmicê já arreparou que oiz em
dia o cocô de cavalo num sai em bolotas, como antigamente...?
- Não. Nunca reparei...
- Ara, ara, disse o Jonas. Antis, o animar cumia apenasmente capim, Du
bom, num tinha esse tar de agrotóchi... Era só sortár os bicho no pasto... As
água do rio era de premera, da mió calidade. Oiz é ração disso, ração
daquiloutro, alfafa, alfafinha, alfafão. Ói o resurtado... As bosta cai e
esparrama iguár as bosta de vaca. Bosta fraca, Sô.
- Cultura inútil... Quero saber é
como você se tornou carroceiro, disse o Lauro.
- Chego lá. Depois de uma bicada
em minha Salinas, prosseguiu:
“Fui parar em sua casa. Jantei,
fui ficando, ficando e mais tarde, proseando na rede do alpendre, o Jonas
falou-me de um frete que teria acertado para o dia seguinte. Vez em quando,
enquanto falava, reclamava de uma dor nas costas e, realmente, recolheu-se
cedo, com febre. Eu fiquei mais um pouco na rede, fumando um bagulhinho e
curtindo a lua.”
- E aí...?
- Meus amigos, manhã seguinte o
homem não conseguiu levantar. Estava mal. Pediu-me então que fizesse aquele
carreto... racharia o lucro comigo, prometeu. E eu topei a parada. Dá um
cigarro aí...
O andarilho soltou a fumaça e
continuou: “Fui ver a carroça. Preparar a carroça não foi tão difícel, eram só três
sacas de milho. O que me incomodava é que o Papa-capim estava o tempo todo de
pau..., como direi, com ereção. É isso
aí, com tesão, manja?
- Papa-capim...?
- Era o nome do cavalo. O danado
vivia com uma tesão danada. Preocupado, falei com o Jonas mas ele achava que
era só sem-vergonhice... Encarei a empreitada assim mesmo; primeiro tentei amarrar o negócio dele à barrigueira; não deu
certo, o bicho esperneou que nem em rodeio. Joguei água fria, nada. Tive,
então, a ideia de fazer um fraldão com um lençol... o aparelho do animal rasgou
o lençol... Aí, desisti. E lá fui eu fazer a entrega pelas ruas, a mulherada
virando os rostos pros lados. A molecada gritando e dando sugestões, as mais
escabrosas possível. Um sufoco.
- Continua... continua... -Pedi.
- Dia seguinte, quando voltei, o
pobre do Jonas havia sido levado para um hospital de outra cidade. Deixou um
bilhete para que eu cuidasse do sítio e do Papa-capim durante alguns dias. Não
pude recusar, podia?
- Até aí, tudo
bem. E o que isso tem a ver com o
sax? Alguém perguntou.
- Meu irmão...
Dois dias depois, o Jonas morre. Cuidamos do enterro. E agora? Até que
chegassem os parentes, fui ficando. Trabalhei com a carroça uns três meses,
enquanto havia estoque de milho e mandioca. Chamei até um veterinário para ver
o cavalo mas ele nada resolveu. Só informou o nome da doença: Priaprismo.
- Essa doença
até que tem suas vantagens... Comentou o Lauro com ar cínico.
- Foi então
que mudei o nome do cavalo para Viagra e apelidei o sax de Lexoton...
- ???
- Calma... É
que descobri, por acaso, que quando tocava o sax o Viagra sossegava. Logo o
aparelho do bicho relaxava, ficava assim, meia-bomba.
- Verdade ou
mentira... beberei a isso. Essa foi boa., disse o Lauro.
- "Era muito constrangedor e cansativo", voltava o Astolfo do banheiro, ainda abotoando a braguilha. “Conduzir a carroça, entregar a mercadoria, e ao mesmo tempo, soprando o sax...” Era demais.
O assunto da
venda do sax ressurgiu e finalmente indagamos
o preço do sax. Duzentos reais. Tá louco, Che... Toma cinquentinha e
lamba os beiços. Contra-proposta aceita, feita a vaquinha e o andarilho foi-se,
assoviando “Hay Jude...”.
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Semanas depois recebemos, todos, notificação da Delegacia: intimados a comparecer à DP para esclarecimentos.
- Receptador,
eu ? Ou melhor, nós ?
- Sim,
senhores. Receptação de objeto furtado. Estávamos no rastro daquele meliante há
mais de ano... Falou o delegado.
- Um
instrumento velho, faltando peças...
- Os senhores
sabem quem era o proprietário? O Sr.Dr.
Abelardo Azevedo, Delegado de Polícia em Guarapuava, no Paraná.
- A.A. Deduzimos. Filho de uma boa mãe, esse tal de
Astolfo...
- Que mané
Astolfo, que nada, meus amigos, o nome dele é Juvenal Pires da Cruz e tem o
apelido de “Olhamerdaí”, procurado em todo o sul do país; mania de hippy. Foi
preso em Guarapuava mas escapuliu. Ladino, bem falante, “que sax bonito, deixe
eu ver, vamos rachar uma garrafa de pinga...? O carcereiro amarrou um pileque
daqueles. Resultado: Olhamerdaí caiu na estrada. Com o sax, é claro.
- A gente não
aprende... Disse o Carlão, esfregando gelo na testa, por conta da enxaqueca.
- Tem mais.
Sabem qual a acusação chegada esta semana ? Em Ouro Preto roubou o violoncelo
da Orquestra Municipal, disse o Detetive fechando o prontuário e acendendo o
charuto com um Zipo.
- Êpa!! ...este isqueiro é meu... Gritei, levantando-me. "Estava sumido há tempos..."
- Foi presente do Juvenal querendo me
subornar, justificou-se o Detetive.
- Olhe no
verso, esta gravado JPC, minhas iniciais. -Argumentei convicto.
- Ou...
Juvenal Pires da Cruz... retrucou o policial embolsando o isqueiro.
- A gente não
apr...
- Já sei,
Carlão. Já sei!.
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(Fim do 1º Conto)
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