quinta-feira, 20 de junho de 2013


TRILOGIA   "O HIPPY, O GARÇOM ARGENTINO E O PIERRÔ"



O HIPPY E O SAX

Praia do Forte, finalzinho de tarde e  tomávamos um chopinho num daqueles quiosques. A novidade  é que depois de muitos dias chuvosos, finalmente o sol, ainda meio tímido, resolvera dar as caras e o assunto na mesa era justamente o fato de que o mês de novembro em outras épocas era verão, com as tardes bem mais quentes. A conversa seguia descontraída, entremeada de chope, peixe frito e observações sobre pernas torneadas que desfilavam ali ao lado, no calçadão.
Na mesa vizinha, livrando-se da mochila, um homem desperta a nossa atenção: rabo de cavalo, colete franjado, colares e outros penduricalhos da era hippy, e além do mais, exibindo um sax a tiracolo.
- Pessoal... século XXI... esse cara não está um pouco atrasado,  não...?   - Observei.
- É que ele anda a pé...   -Disse o Lauro, não perdendo a piada.

Papo vai, papo vem, o hippy foi ignorado, ou melhor, o beatnik, pois a aparência era sessentona. O papo prosseguia: “Como era mesmo o nome do cavalo de Rocky Lane? E o do cachorro do Fantasma? Como se chamava o menino ator de “Shane”?  O Lauro matando todas, aliás com ele, conversa de cinema era até covardia...
- Viu a lourinha que passou? Nova, nova e já com celulite... Comentou o Carlão.
E nós, aposentados ou de folga, filosofando  e solucionando os problemas da humanidade, enquanto a noite dava os primeiros sinais de aproximação.

Súbito, o "coroa" andarilho achegou-se: “Boas tardes...!” Será que alguém pode ajudar-me ? Estou querendo, ou  melhor, necessitando vender este saxofone...”  Era um  sax tenor de cor indefinida, meio azinhavrada mas mostrava ainda alguma dignidade. Por onde deve ter andado esse sax... pensei. O som era razoável, eu percebera de longe quando o falso hippy ameaçou algumas notas. Falso sim!, onde já se viu andarilho com barba aparada e sapatos engraxados?, pensava cá comigo.

- Vendo barato, disse com os olhos mais honestos qu’eu já vira. “É que estou muito precisado...”
- Está com fome?  - Fraquejei, lembrando de meu tempo de estrada.
- Hoje tomei só o café da manhã...
O Carlão convidou-o a sentar e chamou o garçom. Antes de o peixe chegar, o Lauro, com certo jeito, fez o apelo: “Não é pra compensar o lanche, não, mas dá pra levar um bolero, ou um fox? Um fundo musical para esse belo por-de-sol”. Falou, cantarolando e apontando para o  Sudoeste:  “Nada além... nada além de uma ilusão...”
                                                                                                                                     
- Não, meu amigo. Não tenho mais condições de tocar...
- Só umazinha...
- Sinto muito...Desculpe.
Diante da recusa mudou-se de assunto. Ele continuou comendo o seu peixe com pão, participando da conversa e do chope, e vez ou outra insistia, tipo “Pô... que legal se conseguisse vender o sax... Poder seguir viagem. Na verdade já estou meio cansado, estou ficando velho... Já fiz de tudo: Toquei em bares, em bordéis, lavei pratos na Argentina...” E seguiu contando casos interessantes.
Enquanto acendia  o cigarro com meu  isqueiro Zipo, indaguei:
- E esse AA gravado no sax... é de Alcoólicos Anônimos ?
- Não. Desculpe, nem me apresentei, Astolfo Alvarenga, prazer!

Um pouco para ilustrar a conversa, um pouco para matar saudades, perguntei o que havia acontecido de mais absurdo em suas andanças.
- Muita coisa... muita coisa. Na Patagônia, por exemplo, cheguei a trabalhar como segurança de um bordel. Guarda-costas de cafetina... Trabalhava para comer.
- Comer o quê ? Perguntou o Carlão, com um sorriso maroto.
- Tudo... E o andarilho soltou uma risadinha. Mas absurdo mesmo foi a do trem, continuou: “Um dia, nos Andes, nevando muito, caminhava na estrada margeando a linha férrea. Nisso, ao longe, ouvi um apito de trem.  Sem a mínima chance mas sem nada a perder, fiz sinal de carona e...
- Não vai dizer que o trem parou...!
- Não deu outra. Juro pela minha mãesinha. Fui até o Chile.

O Astolfo deu um gole no chope e prosseguiu. “Mas em termos de trabalho, o mais estranho foi o da carroça”.
- Foi carroceiro?!
- Exatamente. É uma história meio longa... Aliás, foi por conta desse batente que enjoei do Lexoton... Nunca mais fui o mesmo.
- Lexoton...?
- Isso mesmo,  é o nome do sax...
- Conta... conta. Mais chope aqui pro nosso amigo... Empolgou-se o Lauro.

O Astolfo continuou...                                                                                                                                     

"Eu estava no interior do Paraná, pros lados de Terra Rica, quando caminhando numa estradinha secundária, passou uma carroça e pedi  carona. Ao lado do carroceiro, alimentava uma prosinha simples, coisas da roça, passarinho, galo de briga, quando o Jonas, analfabeto mas sábio por suas mazelas da vida, observou:
- Vosmicê já arreparou que oiz em dia o cocô de cavalo num sai em bolotas, como antigamente...?
- Não. Nunca reparei...
- Ara, ara, disse o Jonas. Antis, o animar cumia apenasmente capim, Du bom, num tinha esse tar de agrotóchi... Era só sortár os bicho no pasto... As água do rio era de premera, da mió calidade. Oiz é ração disso, ração daquiloutro, alfafa, alfafinha, alfafão. Ói o resurtado... As bosta cai e esparrama iguár as bosta de vaca. Bosta fraca, Sô.
- Cultura inútil... Quero saber é como você se tornou carroceiro, disse o  Lauro.
- Chego lá. Depois de uma bicada em minha Salinas, prosseguiu:
“Fui parar em sua casa. Jantei, fui ficando, ficando e mais tarde, proseando na rede do alpendre, o Jonas falou-me de um frete que teria acertado para o dia seguinte. Vez em quando, enquanto falava, reclamava de uma dor nas costas e, realmente, recolheu-se cedo, com febre. Eu fiquei mais um pouco na rede, fumando um bagulhinho e curtindo a lua.”

- E aí...?
- Meus amigos, manhã seguinte o homem não conseguiu levantar. Estava mal. Pediu-me então que fizesse aquele carreto... racharia o lucro comigo, prometeu. E eu topei a parada. Dá um cigarro aí...
O andarilho soltou a fumaça e continuou: “Fui ver a carroça. Preparar a carroça não foi tão difícel, eram só três sacas de milho. O que me incomodava é que o Papa-capim estava o tempo todo de pau...,  como direi, com ereção. É isso aí, com tesão, manja?
- Papa-capim...?
- Era o nome do cavalo. O danado vivia com uma tesão danada. Preocupado, falei com o Jonas mas ele achava que era só sem-vergonhice... Encarei a empreitada assim mesmo; primeiro tentei  amarrar o negócio dele à barrigueira; não deu certo, o bicho esperneou que nem em rodeio. Joguei água fria, nada. Tive, então, a ideia de fazer um fraldão com um lençol... o aparelho do animal rasgou o lençol... Aí, desisti. E lá fui eu fazer a entrega pelas ruas, a mulherada virando os rostos pros lados. A molecada gritando e dando sugestões, as mais escabrosas possível. Um sufoco.

                                                                                                                      - Continua... continua...  -Pedi.
                                                                                        
- Dia seguinte, quando voltei, o pobre do Jonas havia sido levado para um hospital de outra cidade. Deixou um bilhete para que eu cuidasse do sítio e do Papa-capim durante alguns dias. Não pude recusar, podia?
- Até aí, tudo bem. E o que isso tem a ver com  o sax?  Alguém perguntou.
- Meu irmão... Dois dias depois, o Jonas morre. Cuidamos do enterro. E agora? Até que chegassem os parentes, fui ficando. Trabalhei com a carroça uns três  meses, enquanto havia estoque de milho e mandioca. Chamei até um veterinário para ver o cavalo mas ele nada resolveu. Só informou o nome da doença: Priaprismo.
- Essa doença até que tem suas vantagens... Comentou o Lauro com ar cínico.
- Foi então que mudei o nome do cavalo para Viagra e apelidei o sax de Lexoton...
- ???
- Calma... É que descobri, por acaso, que quando tocava o sax o Viagra sossegava. Logo o aparelho do bicho relaxava, ficava assim, meia-bomba.
- Verdade ou mentira... beberei a isso. Essa foi boa., disse o Lauro.

- "Era muito constrangedor e cansativo", voltava o Astolfo do banheiro, ainda abotoando a braguilha. “Conduzir a carroça, entregar a mercadoria, e ao mesmo tempo, soprando o sax...” Era demais.
O assunto da venda do sax ressurgiu e finalmente indagamos  o preço do sax. Duzentos reais. Tá louco, Che... Toma cinquentinha e lamba os beiços. Contra-proposta aceita, feita a vaquinha e o andarilho foi-se, assoviando “Hay Jude...”.
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Semanas depois recebemos, todos, notificação da Delegacia: intimados a comparecer à DP para esclarecimentos.
- Receptador, eu ? Ou melhor, nós ?
- Sim, senhores. Receptação de objeto furtado. Estávamos no rastro daquele meliante há mais de ano... Falou o delegado.
- Um instrumento velho, faltando peças...
- Os senhores sabem quem era o proprietário? O  Sr.Dr. Abelardo Azevedo, Delegado de Polícia em Guarapuava,  no Paraná.
- A.A.  Deduzimos. Filho de uma boa mãe, esse tal de Astolfo...

                                                                                                                                                    
- Que mané Astolfo, que nada, meus amigos, o nome dele é Juvenal Pires da Cruz e tem o apelido de “Olhamerdaí”, procurado em todo o sul do país; mania de hippy. Foi preso em Guarapuava mas escapuliu. Ladino, bem falante, “que sax bonito, deixe eu ver, vamos rachar uma garrafa de pinga...? O carcereiro amarrou um pileque daqueles. Resultado: Olhamerdaí caiu na estrada. Com o sax, é claro.                                                   
- A gente não aprende... Disse o Carlão, esfregando gelo na testa, por conta da enxaqueca.
- Tem mais. Sabem qual a acusação chegada esta semana ? Em Ouro Preto roubou o violoncelo da Orquestra Municipal, disse o Detetive fechando o prontuário e acendendo o charuto com um Zipo.

- Êpa!! ...este isqueiro é meu... Gritei, levantando-me. "Estava sumido há tempos..."
- Foi  presente do Juvenal querendo me subornar,  justificou-se o Detetive.
- Olhe no verso, esta gravado JPC, minhas iniciais.    -Argumentei convicto.
- Ou... Juvenal Pires da Cruz... retrucou o policial embolsando o isqueiro.
- A gente não apr...
- Já sei, Carlão. Já sei!.
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(Fim do 1º Conto)


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