segunda-feira, 3 de junho de 2013


CONTO 

IPIRANGA

Nestes dias de sol aberto, o trabalho entre quatro paredes deveria ser proibido, pensava;  de repente notou que as pessoas sentadas ao seu redor eram tão idosas quanto ele próprio. A maioria, com quase ou mais uma existência frente à maquina de escrever. Olhou novamente os companheiros: uma dezena de homens com camisa branca, colarinho aberto e gravata de laço afrouxado e pela primeira vez reparou também se vestir igual.

No ar pairava, insistentemente, o pipocar das teclas: Faturas. Duplicatas. Cia. Ltda. Vencimento. Juros de mora. Subscrevemo-nos. Prezados senhores. Ao acender um Hollywood, ouviu:
- ...joga um pra mim.
- Vê se bebe menos e compra cigarros...
Foi como se não tivesse dito nada pois a piada era tão velha quanto o próprio escritório. E, do nada, começou a rir e o riso cresceu e desabou numa histérica gargalhada; nem sabia se era da tolice da piada, dele mesmo ou dos amigos. Riu gostosamente enquanto os vizinhos, sem entenderem, olhavam-no fixamente. Se alguém chegasse ali, no momento, veria uma cena por demais surreal: Um homem ao centro, rindo às lágrimas e uma dezena de outros, em volta, com expressões decididamente imbecis. Aconteceu: o “seu” Macedo foi entrando e cobrando:
- Qual foi a piada, minha gente?
O grupo virou-se para as máquinas e o  pipocar recomeçou.  Depois de alguns minutos, ele levantou-se, foi ao banheiro, passou água no rosto e saiu sem dizer coisa alguma a ninguém. O “seu” Macedo perguntou algo mas não houve resposta.

No elevador, olhou o relógio: dez para as três. Na rua, teve que apertar os olhos por causa da luminosidade; o sol radiante era convidativo à vida. Caminhou vagarosamente pela Avenida Atlântica. Escolheu um sorvete bem colorido –l  “unidunitê, lalameminguê, umsorvetecolorè...”-  e tal um menino, continuou devagar, olhando vitrines e apreciando discretamente as meninas passantes. Era a vida! Lembrou da gravata, puxou-a vigorosamente, jogou-a numa lixeira e sorriu, recordando o “laços fora, soldados...” da história. Pois bem, hoje seria o seu Ipiranga.

Desceu à praia e tirou calça e camisa; seu corpo era tão branco e velho quanto a cueca samba-canção mas àquela hora a praia era só sua... O sol também. E a brisa também. Sentou-se, deixando livre ao vento os cabelos ralos e grisalhos. Os olhos contemplavam longe o não sei o quê e a mão direita rabiscava na areia enquanto o sorvete derretia, lambuzando-lhe a outra mão. Mais tarde, o sol se foi, a brisa esfriou e ele permaneceu um pouco mais, entregue à meditação.

Estava completamente escuro quando, após se vestir, voltou à avenida com os sapatos na mão; andou pelas calçadas mornas –pés sujos de areia e calças arregaçadas- prazerosamente alienado aos olhares curiosos. Sentou-se no Alcazar e pediu um chope duplo, admirando-se da pedida já que era abstêmio há séculos.

Passava das vinte horas quando o garçom resolveu acordá-lo. Pôs a mão em seu ombro, sacudiu-o e nada (ele sempre teve o sono pesado...). Vendo um pequeno embrulho ao lado do copo, cheirou:  veneno para rato.
Estava proclamada a independência.

JPC (1967)

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