CONTO
IPIRANGA
Nestes dias de sol aberto, o trabalho entre quatro paredes
deveria ser proibido, pensava; de
repente notou que as pessoas sentadas ao seu redor eram tão idosas quanto ele
próprio. A maioria, com quase ou mais uma existência frente à maquina de
escrever. Olhou novamente os companheiros: uma dezena de homens com camisa
branca, colarinho aberto e gravata de laço afrouxado e pela primeira vez
reparou também se vestir igual.
No ar pairava,
insistentemente, o pipocar das teclas: Faturas. Duplicatas. Cia. Ltda.
Vencimento. Juros de mora. Subscrevemo-nos. Prezados senhores. Ao acender um
Hollywood, ouviu:
- ...joga um pra mim.
- Vê se bebe menos e compra cigarros...
Foi como se não tivesse dito nada pois a piada era tão velha
quanto o próprio escritório. E, do nada, começou a rir e o riso cresceu e
desabou numa histérica gargalhada; nem sabia se era da tolice da piada, dele
mesmo ou dos amigos. Riu gostosamente enquanto os vizinhos, sem entenderem,
olhavam-no fixamente. Se alguém chegasse ali, no momento, veria uma cena por
demais surreal: Um homem ao centro, rindo às lágrimas e uma dezena de outros,
em volta, com expressões decididamente imbecis. Aconteceu: o “seu” Macedo foi
entrando e cobrando:
- Qual foi a piada, minha gente?
O grupo virou-se para as máquinas e o pipocar recomeçou. Depois de alguns minutos, ele levantou-se,
foi ao banheiro, passou água no rosto e saiu sem dizer coisa alguma a ninguém.
O “seu” Macedo perguntou algo mas não houve resposta.
No elevador, olhou o relógio: dez para as três. Na rua, teve
que apertar os olhos por causa da luminosidade; o sol radiante era convidativo
à vida. Caminhou vagarosamente pela Avenida Atlântica. Escolheu um sorvete bem
colorido –l “unidunitê, lalameminguê, umsorvetecolorè...”- e tal um menino, continuou devagar, olhando
vitrines e apreciando discretamente as meninas passantes. Era a vida! Lembrou
da gravata, puxou-a vigorosamente, jogou-a numa lixeira e sorriu, recordando o
“laços fora, soldados...” da história. Pois bem, hoje seria o seu Ipiranga.
Desceu à praia e tirou calça e camisa; seu corpo era tão
branco e velho quanto a cueca samba-canção mas àquela hora a praia era só sua...
O sol também. E a brisa também. Sentou-se, deixando livre ao vento os cabelos
ralos e grisalhos. Os olhos contemplavam longe o não sei o quê e a mão direita rabiscava
na areia enquanto o sorvete derretia, lambuzando-lhe a outra mão. Mais tarde, o
sol se foi, a brisa esfriou e ele permaneceu um pouco mais, entregue à
meditação.
Estava completamente escuro quando, após se vestir, voltou à
avenida com os sapatos na mão; andou pelas calçadas mornas –pés sujos de areia
e calças arregaçadas- prazerosamente alienado aos olhares curiosos. Sentou-se
no Alcazar e pediu um chope duplo, admirando-se da pedida já que era abstêmio
há séculos.
Passava das vinte horas quando o garçom resolveu acordá-lo.
Pôs a mão em seu ombro, sacudiu-o e nada (ele sempre teve o sono pesado...).
Vendo um pequeno embrulho ao lado do copo, cheirou: veneno para rato.
Estava proclamada a independência.
JPC (1967)
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