terça-feira, 4 de junho de 2013


CONTO

Uma certa canção de ninar


Ela era bonita e meiga, embora certo exagero na pintura. Os lábios, as maçãs do rosto ou os olhos, difícil precisar onde o excesso de maquiagem, ou seria pela roupa, pela atitude, ou o andar que, à primeira vista, logo ao bater os olhos, ele identificara o tipo. Mesmo assim   sentiu-se  atraído. Por que não, perguntou-se já fazendo um sinal. Imperceptível quase -a não ser por quem ansiava por um sinal- e ela se aproximou. Convidada, sentou-se, apesar da advertência que o garçom lhe fizera. Tô sabendo, respondeu.

Conversa vai, chope vem, entabularam uma conversa que, se começou com certos tropeços a procura de rumo, pouco depois desenvolveu-se  ágil, inteligente. Vida e solidão era o tema.

A despeito da duvidosa aparência, ela demonstrava rapidez de mente, sensibilidade. Ele, embevecido e surpreso com a própria perplexidade, explorava, extraía conceitos, experiências que provavelmente seriam  aproveitadas na crônica de amanhã ou, quem sabe, próximo livro.

Passado algum tempo,  percebendo   ter investido na pessoa errada -mas sem demonstrar frustração- Silvia  despediu-se e continuou sua ronda.

Luisão continuou ali, sentado, cabeça fervilhando; muitas ideias, confusas algumas, outras definidas, pediu ao garçom papel para anotações que a seguir rasgou e  atirou longe.
Já tarde, portas do bar arriando e pessoal da casa jogando água no piso, pendurou a conta e  retirou-se,  indo pela  Guajajara abaixo, com uma velha melodia na cabeça... inútil, a letra não lhe vinha. Quase esquina com a João Pinheiro, outra canção no ar misturou-se com a sua. Reconhecendo a voz de Silvia,  deu uma pequena parada: ela cantarolava junto a dois meninos engalfinhados, irmanados num cobertor;  levemente embriagada, sorriu de jeito meigo, entre triste e feliz.

Luisão retribuiu o sorriso, sacudiu a cabeça com ar irônico, pensou uns segundos e apalpando-se um cigarro, sentou-se no degrau, junto ao grupo. Para espanto dos pivetes, interrompidos com a insólita presença do homem bem vestido e balbuciando uma  canção de palavras estranhas: Frêre Jaques,  Frêre Jaques... Dorme vous,  dorme vous...

JPC - Dez/1984

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