CONTO
Uma certa canção de ninar
Ela era bonita e meiga, embora certo exagero na pintura. Os lábios, as maçãs do rosto ou os olhos, difícil precisar onde o excesso de maquiagem, ou seria pela roupa, pela atitude, ou o andar que, à primeira vista, logo ao bater os olhos, ele identificara o tipo. Mesmo assim sentiu-se atraído. Por que não, perguntou-se já fazendo um sinal. Imperceptível quase -a não ser por quem ansiava por um sinal- e ela se aproximou. Convidada, sentou-se, apesar da advertência que o garçom lhe fizera. Tô sabendo, respondeu.
Conversa vai, chope vem, entabularam uma conversa que, se começou com certos tropeços a procura de rumo, pouco depois desenvolveu-se ágil, inteligente. Vida e solidão era o tema.
A despeito da duvidosa aparência, ela demonstrava rapidez de mente, sensibilidade. Ele, embevecido e surpreso com a própria perplexidade, explorava, extraía conceitos, experiências que provavelmente seriam aproveitadas na crônica de amanhã ou, quem sabe, próximo livro.
Passado algum tempo, percebendo ter investido na pessoa errada -mas sem demonstrar frustração- Silvia despediu-se e continuou sua ronda.
Luisão continuou ali, sentado, cabeça fervilhando; muitas ideias, confusas algumas, outras definidas, pediu ao garçom papel para anotações que a seguir rasgou e atirou longe.
Já tarde, portas do bar arriando e pessoal da casa jogando água no piso, pendurou a conta e retirou-se, indo pela Guajajara abaixo, com uma velha melodia na cabeça... inútil, a letra não lhe vinha. Quase esquina com a João Pinheiro, outra canção no ar misturou-se com a sua. Reconhecendo a voz de Silvia, deu uma pequena parada: ela cantarolava junto a dois meninos engalfinhados, irmanados num cobertor; levemente embriagada, sorriu de jeito meigo, entre triste e feliz.
Luisão retribuiu o sorriso, sacudiu a cabeça com ar irônico, pensou uns segundos e apalpando-se um cigarro, sentou-se no degrau, junto ao grupo. Para espanto dos pivetes, interrompidos com a insólita presença do homem bem vestido e balbuciando uma canção de palavras estranhas: Frêre Jaques, Frêre Jaques... Dorme vous, dorme vous...
JPC - Dez/1984
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