CONTO
INÚTEIS PALAVRAS
Despertei
com as suas pernas embaralhadas nas minhas. Ela dormia profunda e
tranquilamente. A nossa relação havia transcorrido de um modo muito especial, singular em minha vida:
absolutamente sem palavras; intensamente,
literalmente. Não pronunciáramos uma palavra sequer, tendo dividido desejos e gozos de modo silencioso. Apenas esgares
e um ou outro grunhido lhe escapara da
garganta ou, sabe Deus, do mais profundo de suas vísceras.
Desperto,
beliscava um resto de pizza e tentava relembrar os detalhes dessa experiência incrível, afinal estava de passagem na pequena cidade, apenas
para pernoitar e seguir viagem pela manhã: Lembro que passava um pouco das dez da noite, deitado no quarto do hotel daquela
cidadezinha do interior de Minas, sem sono e nem um livro ao alcance, aliás,
sempre havia alguma coisa no carro, eu estava é sem saco para ler. Uma cerveja cairia melhor. Levantei-me e saí
a caminhar pela ruazinha escura e
estreita. Uma cidade realmente muito calma, constatava.
À
medida que caminhava, notei um burburinho crescendo gradualmente. Era o povo concentrado na praça principal,
passeando para cima e para baixo, praticando o que antigamente era conhecido
por trotoir. Para apreciar melhor o movimento, encostei-me
no balcão de um barzinho e bebericava uma cerveja enquanto trocava amenidades
com o solitário garçom.
Minutos
depois, entra um grupo de jovens, descontraído e falante. Como o bar era
demasiado pequeno, ficamos todos muito próximos e quando me dei conta, já interagia
com a turma, apesar da diferença de idades.
Lembro-me bem quando ela chegou, louríssima, risonha, beijando alguns
deles e apossando-se de um copo. Dezoito ou dezenove anos, calculei.
-
Esta está bem geladinha... –Servi-lhe de minha cerveja.
Ela
agradeceu com a cabeça e chegou-se mais para perto. No meio do falatório e do
riso geral, tentei algum assunto com ela, sem sucesso. Só sorrisos.
- É muda.
–Socorreu-me o garçom, discreto.
Puxa, que loucura! Uma garota linda...
eu tentaria até um namorico ...Pensei machista, mas... Por
que não...? Repensei.
Esforcei-me
para me mostrar natural e toquei-lhe o braço. Um sorriso, dessa vez dirigido a mim. Exclusivo.
Era toda bonita, olhos claros, o busto realçando adolescentemente sob a blusa.
Como proceder? Eu pensava rápido... e instintivamente, com as duas mãos,
traçando a silhueta de seu rosto sinalizei que a achava muito bonita. Entendeu, percebi pela resposta de seus olhos. E com mútuos interesse e mímica, iniciamos um
incomum diálogo.
Em
dado momento, olhei-a fixamente e indaguei, de modo bem pausado, qual era o seu
nome. Vilma, escreveu num guardanapo. E
você? Devolveu-me papel e caneta.
Assim
permanecemos um pouco isolados do grupo, trocando gestos e anotações ternos. Tomando
as suas mãos adivinhei um contato peculiar. Um estranho e agradável segurar de
mãos. Suave mas entregue. Delicado mas total. Carência? Ficava eu cada vez mais
interessado, curioso.
Seus
amigos se retiraram em busca de outro bar mas ela agradeceu o convite e
preferiu continuar ali. Eles, compreendendo o que se passava, riram e se foram. Desse modo, ficamos mais um longo tempo “conversando”, trocando anotações e olhares.
Saindo
dali, peguei o carro no estacionamento do hotel e partimos a procura do único
motel da região. Na rodovia, ela apontou-me a lua de modo tão radiante que
adivinhei felicidade em sua expressão. E ela, dando-se conta de que eu havia
percebido, beijou-me ternamente o rosto.
......................................................
-É uma pena ter que continuar
viagem. É uma pena ter que despertá-la
agora e levá-la de volta à sua casa... Pensei um pouco e resolvi deixá-la descansar mais algum tempo. Enquanto isso tomaria um banho.
Ela
dormia serenamente. Surda e muda de prazer.
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Não
lembro se era sexta ou sábado, só sei
que não estava com o mínimo ânimo para sair e encontrar com a turma, falar as
mesmas coisas, rir das mesmas piadas
ou acrescentar detalhes nas velhas
fofocas. Mas fazer o quê numa noite sem graça como aquela? Um tédio.
Havia
perdido o ano no colégio e este ano
agora, também não estava nada bem. Era quase certo que eu repetiria. Pela segunda vez... que merda! A minha mãe não descolava de meu pé,
principalmente depois que terminei o
namoro com o Mundinho. Quer saber? O
Mundinho era um bobalhão... só queria saber de futebol, de torneio disso,
torneio daquilo, taça não sei de quê, campeonato de várzea, o cacete... Não ia mesmo dar certo.
Enfim,
resolvi sair de casa assim mesmo. Àquela altura nem desconfiava que seria uma
das noites mais interessantes em minha insípida vidinha.
-
Vai sair novamente? Já não saiu
anteontem...e ontem...?
-
Fazer o quê em casa, mãe? Nem a televisão tá funcionando...
Encontrei
o pessoal no Bar do Jeremias. Estava
todo mundo já meio alterado, já tinham
até fumado um. De diferente, só um coroa -de fora- que à primeira vista
parecia mais velho do que realmente era.
Cara maneiro, logo de saída me ofereceu um copo de cerveja. Percebi que ele queria se entrosar mas, tudo
bem, parecia gente boa... eu só não estava muito a fim de conversas.
Como,
de vez em quando ele puxava assunto, pisquei o
olho pro Jeremias e topei levar o negócio em frente. Quando, outra vez, perguntou alguma
coisa, eu fingi que não era comigo. Nisso, o Jê
sacou e deu uma força na sacanagem
que eu estava aprontando: Disse que eu era muda. Pra quê, meu amigo? Aí
é que o coroa ficou animado, excitado,
sei lá. Os homens são engraçados... Viu
uma dificuldade e se empolgou. Conquistar uma garota muda ... era um senhor desafio. Deve ter pensado
lá no seu íntimo, “vai ser diferente,
comer uma mudinha...”.
E
não é que o cara tinha um “papo” agradável?
Era escritor, editor, uma coisa assim, e arranjou logo um jeito de se
comunicar. Passou a escrever bilhetes, perguntando
o
meu nome, o que eu fazia, uma pá de coisas. E eu tirando o maior sarro, escrevi
no papel que me chamava Vilma, que fazia
faculdade, há, há, há. Se ele soubesse...
O
engraçado é que eu fui me entusiasmando com o seu jeito calmo, sua delicadeza,
porque, fiquei pensando... Ryd Naruj (Nome estranho...) acreditou que
eu era muda, e mesmo assim, está me
tratando normalmente, como se eu fosse uma pessoa normal... Gente fina,
pensei. E inteligente. O danado não me cantou para irmos pro motel;
simplesmente perguntou se o céu de minha
terra era bonito; se as estrelas podiam
ser vistas; se de manhã tinha orvalho sobre as flores; se a lua ficava totalmente
redonda, porque onde ele morava, na capital, havia tantos edifícios, tanta luz elétrica e cartazes luminosos que
não se via lua, nem estrelas, nem orvalho.
Não se ouvia o farfalhar de galhos de árvores, muito menos os passarinhos; nem se percebia o
cheiro de grama. Era somente barulho de buzinas e cheiro de fumaça e asfalto. E
mais: só conhecia essas belezas através
de poesias e de filmes. Claro que ele
estava mentindo, mas achei aquilo romântico. Era uma mentira muito romântica.
Concordei
em sair de carro, e passear pela
redondeza, e a lua -eu não havia
reparado- estava um espetáculo. Em casa,
estava tão entediada que não percebera que era noite de
lua cheia. Não deu outra, rolou uns beijos, umas carícias e acabamos dormindo
juntos. Foi uma noite maravilhosa. Só não foi
p-e-r-f-e-i-t-a porque eu tive que me segurar; não pude extravasar,
gritar, uivar de prazer, como eu
gosto. Tive vergonha de lhe falar a
verdade, de que não era muda merda
nenhuma; era faladeira até por demais.
De
manhã, fingi que dormia enquanto ele se aprontava; na verdade, estava em dúvida se abria o jogo
ou não. Melhor deixar pra lá, resolvi; estava bom daquele jeito. O interessante
é que restou dessa noite um lance muito legal:
descobri que existe mais de uma maneira de ser feliz. Dependendo da
ocasião, até as palavras podem ser inúteis.
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É... a lourinha era mesmo boa de cama; uma pena ser muda. Uma coisa não entendi:
Para quê aquele celular no bolso da calça ? Seria só
para mensagens? Mas se era surda como ouviria o sinal de entrada de mensagem...? Estranho isso...
E o Ryd continuou dirigindo e matutando...
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