domingo, 8 de setembro de 2013

NO CINEMA COM LAURO FARIA

“SE VOCÊ MORRER, EU TE MATO”
Esta frase que ilustra a coluna, contundente, absurda e contraditória, serviu de epígrafe para a mostra cinematográfica, de 16 de abril a 5 de maio deste ano,  sobre   SAMUEL FULLER (1912 – 1997), no cinema I do Centro Cultural  Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Esta retrospectiva veio em boa hora, já que o artista, visto como o mestre do filme B (de baixo orçamento) e toda a sua obra – independente, polêmica e iconoclasta – bate de frente com as produções milionárias de hoje em dia. Ficamos contentes com a grande afluência de público, já que o diretor, considerado primitivo, nunca foi uma unanimidade; também escrevia e produzia; mas suas fitas sempre foram instigantes.
Fuller, também conhecido como “O Poeta dos Tablóides”, começou a vida dentro de um jornal como garoto de recados, arquivista, assistente do editor-redator-chefe e, depois, repórter. Sempre quis ser editor de jornal; mesmo o menor do mundo, numa pequena cidade, mas virou cineasta. Quando a América entrou na Segunda Guerra Mundial, alistou-se como soldado raso, simplesmente porque “iria fazer as maiores reportagens da sua vida”.
Munido com uma câmera de 16 mm, filmou cenas de batalha e muito do cotidiano das trincheiras, além de coisas horrendas nos campos de concentração.  Estas lembranças de combatente estão registradas na sua obra de referência AGONIA E GLÓRIA (“The Big Red One”  -  1980), presente no evento.
A sentença controversa que dá título ao texto foi proferida na película CAPACETE DE AÇO (1951).  Um drama bélico no conflito da Coréia (1950/53), que passou no antigo Cine Recreio de Cabo Frio, em 1957; o assistimos, aos 14 anos; e o impacto jamais foi esquecido. A partir desta época, começamos a prestar mais atenção às fichas técnicas das produções, além do elenco; e os nomes dos diretores se tornaram mais importantes.
No filme, o personagem principal é um veterano sargento (Zack – interpretado por Gene Evans, um ator feio e atarracado, genial, enquanto eterno coadjuvante em dezenas de fitas), calejado, grosso, desagradável, que faz uma improvável amizade com um menino sul-coreano. Quando um prisioneiro de guerra – preservado com vida para ser levado aos superiores – ironiza a oração que o menino, baleado, tinha feito pedindo ao Buda que o sargento gostasse dele, Zack, aporrinhado e enlouquecido, descarrega uma saraivada de balas nele e, em seguida, desabafa: “Se você morrer, eu te mato”.
Nossa admiração por Fuller se deve também ao fato dele ter vivido cerca de três meses – na década de 50 – entre os índios Carajás.  Pretendia colher subsídios para escrever um roteiro sobre o livro TIGRERO, que versava sobre um nativo que caçava as onças matadoras das reses dos fazendeiros. Tal filme nunca saiu do papel por suas mãos; foi realizado, porém, um documentário, com esse título, em 1994, por Mika Kaurismaki, em que a presença de um envelhecido Fuller conta a outro realizador (Jim Jarmusch), as peripécias daquele tempo e as diferenças – 40 anos depois – nas aldeias devastadas dos índios. Em seu livro de memórias, ele confessou ter percebido que os selvagens éramos nós... Tenho um amigo que freqüentou Hollywood, alguns anos atrás ( Antônio Maltez ), conheceu Fuller e confirma: Ele era uma “ figuraça!”
Sam Fuller dirigiu 31 produções, sendo 24 para a tela grande, com 51 scritps computados.  Entre os faroestes, causou estranheza, em 1949, EU MATEI JESSE JAMES.  Enquanto outras versões mostram a execução (pelas costas) do famigerado ladrão, no final, aqui, neste, o bandido morre com menos de 20 minutos de filme; e acompanha a indiferença que segue o assassino até sua própria morte.
Entre os filmes noir produzidos, destacamos: ANJO DO MAL (1953), em que o excelente Richard Widmark faz um batedor de carteiras às voltas com espiões comunistas; e: A LEI DOS MARGINAIS (1961), onde um surpreendente Cliff Robertson interpreta um delinqüente obcecado por vingar a morte do pai, assistida por ele, num beco escuro e fétido. Esta cena, no jogo de sombras na parede, é uma das melhores coisas já filmadas na história da sétima arte.
Foto: Mini-Poster de: AGONIA E GLÓRIA.


Até breve.     THE END.                       ( Lauro Affonso faria  /  29/08/2013 ). 



terça-feira, 30 de julho de 2013


CONTO

ENCONTRO COM A JOAN BAEZ

Eu a conheci na década de setenta do século passado, em Cabo Frio.  Na verdade, nunca soubera de sua existência. Assim que chegamos, eu e uma amiga, na casa do pintor José de Dome, no Portinho,  toquei  a campainha  e logo depois chega ele, descalço –como sempre- com ar compenetrado e fazendo sinal de silêncio com os dedos nos lábios. Na outra mão, pincel e espátula.  Deixamos os calçados no hall e caminhamos silenciosamente, nas nuvens, tal como se caminha ao lado de um berço com um  recém-nascido a dormir.

No ar, em toda a casa, todos os cômodos e transbordando para o quintal e também,  suponho,  subindo  pelos galhos, pelas folhagens das árvores,  uma voz limpa, suave e poderosa, que sei eu...? divina. Não entendia a letra da música, em inglês, mas fiquei meio que atordoado, como se  levitando. Que coisa maravilhosa, exclamei. Sshhiiii, ordenou-me o Zé.

Quando acabou a música, com um largo sorriso, apresentou-me: essa é a Joan Baez.

- Mas que merda, eu não falo inglês...        -  Disse, timidamente.
- Não precisa.... só escute.       -  Retrucou o Zé.

E ela começou a cantar outra canção, e mais outra, e mais outra. Eu, embevecido, melhor,  abestalhado, sem entender patavinas. Apenas encantado, em silêncio,  saboreando a melodia, suas palavras -ininteligíveis para mim-  degustando o momento.  Raro momento: Zé de Dome encantando os nossos olhos com as cores  e ela encantando nossos ouvidos com a sua voz.

Trinta anos, não,  quarenta anos  se passaram.

Estamos eu e minha filha em Paris, passando uns dias em casa de meu filho.  Ela havia saído para umas compras e  da rua  me liga:

-   Pai, vem  rápido, AGORA !, toma  o metrô linha 10,  desce na estação Émile Zola e pega a saída da Rue du Commerce e vem rápido. Te espero lá.  ...Calma, não é acidente...  É uma bela  surpresa pra você.

-   Mas  eu estou bebendo um belo de um vinho com  o seu irmão...

-   Vai se arrepender ... E acrescentou:  Mas tem que vir correndo pois ela pode sair...

Cortei a ligação;  me troquei ligeiro e  disparei  para a próxima estação, ali pertinho. O meu filho que me perdoe; o vinho e o queijo deliciosos que esperem... e desci pela escada como se foge de incêndio, de dois em dois degraus, coração acelerado,  na dúvida se era infarto ou se pela ansiedade de “bela” surpresa. Ela quem...?

Conheço bem a filha que tenho; se era para correr é porque o motivo era válido.


Cheguei esbaforido e devia estar vermelho que nem lagosta cozida... me aproximei, arrumando o colarinho da  camisa e quase  não  acreditei: “Ela” era ninguém mais, nem menos,  que a Joan Baez!  “Ela”, diante de minha filha. Caracas!  exclamei de modo adolescente.  E, tal qual a vez em que a conhecera, parei abestalhado, esperando o coração voltar ao normal     (e imaginando se o seguro saúde ainda estava na validade...)


Ela me reconheceu. Embora tantos anos passados, rugas surgidas –em ambos- cabelos embranquecidos - em ambos,  creio, sim,  que ela me reconheceu.  Sorria, modo zombeteiro,  e a mão nos olhos – de soslaio -  com ar de  “o que você está fazendo aqui...?”

-   Eu vim te ver...    –Pensei.

Permanecemos num longo e solene silêncio, só interrompido quando a minha filha bateu uma foto  nossa,  - eu, feliz que nem criança; ela, prometendo vir a Paris no próximo mês para um show no Grand Rex. "Por que não agora...?"  Silêncio. Quebrando o impasse, sorri para a foto, ao lado do cartaz. 

- Acorda, pai... Vambora.                       - Disse a Bia.

                                                


    Joan Baez e eu numa galeria do metrô de Paris.




      

sábado, 20 de julho de 2013

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NO CINEMA COM LAURO FARIA

A PRESENÇA DOS IRMÃOS LYDECKER

Aos domingos, em minha infância nos anos 40 e 50 do Século XX, a matinê do Cine Recreio em Cabo Frio era tão ou mais importante que a Santa Missa matinal na Igreja Matriz.  E entre aqueles dois eventos, tão díspares quantos congregadores, os folguedos infantis tinham que terminar sempre por volta do meio-dia.  Fosse praia, futebol, pipa, bola de gude ou pião, alguém gritava que tinha chegado “a” hora e todos iam correndo para casa, tomar banho, almoçar e se dirigir para a sessão dupla das 14 horas.
A fila que se formava na entrada do velho “poeira” começava na metade do dia, sempre encabeçada por um garoto conhecido por “Giba”, de quem desconhecemos a origem do apelido e seu paradeiro; espero que ainda esteja vivo e bem.  E estes irmãos que dão nome ao humilde texto, também ficavam na fila do cinema?
Não! Eles estavam na tela - quase toda semana - principalmente nas peripécias dos seriados de aventuras, que complementavam o programa cinematográfico de domingo (normalmente: um foco-jornal, trailers, desenho animado, um curta-metragem, um faroeste B, ou uma comédia, (ou) um filme sobre a selva africana e o esperado seriado). E, embora jamais tivéssemos vistos os seus rostos, a importância deles ficaria marcada para sempre em nossas memórias: Os Lydecker eram os responsáveis pelos efeitos especiais que espicaçavam nossa imaginação infantil.  É bom recordar que os seriados da época eram um mundo de cidades subterrâneas, planetas desconhecidos, civilizações perdidas, areias movediças, barcaças misteriosas e povoados assombrados. E, ainda, vales e desfiladeiros com grutas sombrias, minas abandonadas, carruagens fantasmas e lugares cheios de passagens secretas, com alçapões sinistros e muitos mais perigos em cada esquina, com vilões medonhos, mascarados ou não.  Divididos em capítulos, cada episódio terminava com um risco iminente para os protagonistas, que sempre escapavam e, na semana seguinte, enfrentavam – outra vez – uma situação limite da qual iriam se livrar. Os irmãos Lydecker, com seus trabalhos artesanais, conseguiam iludir nossas emoções tão bem que passávamos o resto da semana comentando os episódios e as prováveis maneiras do mocinho e a sua companheira escaparem das armadilhas perigosas.
E aqueles cenários que explodiam, pegavam fogo ou desapareciam debaixo de avalanches ou enchentes eram genialmente preparados pelos LYDECKER (Howard e Theodore) com minuciosas e detalhadas maquetes e miniaturas, muitos truques óticos e mecânicos que faziam a platéia se deliciar. Lembremos que, naquele tempo, os computadores não existiam e muito menos as empresas de efeitos especiais que dominam o universo cinematográfico, notadamente a INDUSTRIAL LIGHT & MAGIC, responsável por – praticamente – todos os efeitos e truques digitais dos dias de hoje. Enfatiza-se, assim, a grande importância dos Lydecker e outros técnicos daquele período nas fantasias da sétima arte.
Escrevi no terceiro parágrafo “quase toda semana”, porque os manos Lydecker eram contratados da REPUBLIC PICTURES CORPORATION, que realmente foi a Companhia que mais produziu filmes em séries (cerca de 70), juntamente com a UNIVERSAL e a COLUMBIA. De 1929 até 1956 foram realizados 231 seriados ( MASCOT: 24, e a RKO, apenas 1 ), todos sonoros; não nos interessa, aqui, os mudos, feitos antes, desde a primeira década do século passado.  Mas Cabo Frio/RJ, além das fitas de outras produtoras, foi pródigo em exibir quase 90% de toda a produção daquela que nasceu da fusão de outras pequenas empresas do ramo ( MASCOT +  LIBERTY + MONOGRAM + SUPREME + MAJESTIC ).
A REPUBLIC entrou no negócio em 1934 quando comprou – já pronto – e trazendo junto os Lydecker, o seriado “O Sertão Desaparecido” e produzindo em seguida “Guerreiros da Marinha”.
As sessões duplas das matinês se intensificaram nos Estados Unidos, na época da Grande Depressão, depois da quebra da Bolsa de Valores de New York (1929) e chegaram ao Brasil logo a seguir. Nossa garotada, então, foi beneficiada com as produções daquela época que nos fascinaram sobremaneira. Toda a glória para os artistas, técnicos, escritores e diretores desta fase e, em especial, uma coroa de louros para cada um dos irmãos Lydecker, Theodore e Howard, que – com a arte que desenvolveram - influenciaram as idéias, entre outros, dos prestigiados diretores atuais: George Lucas e sua série “Guerra nas Estrelas” e Steven Spielberg com a franquia “Indiana Jones”.

P.S. O “scanner” que ilustra a coluna foi tirado do livro THE REPUBLIC CHATERPLAYS ( 1991). Autor: R. M. HAYES.

Até breve.   THE  END.                             Lauro Affonso Faria  /   15/07/2013.

segunda-feira, 15 de julho de 2013


CONTO



INÚTEIS PALAVRAS

Despertei com as suas pernas embaralhadas nas minhas. Ela dormia profunda e tranquilamente. A nossa relação havia transcorrido de um modo  muito especial, singular em minha vida: absolutamente sem palavras;  intensamente, literalmente. Não pronunciáramos uma palavra sequer, tendo dividido  desejos e gozos de modo silencioso. Apenas esgares e um ou outro grunhido lhe  escapara da garganta ou, sabe Deus, do mais profundo de suas vísceras.

Desperto, beliscava um resto de pizza e   tentava relembrar os detalhes  dessa experiência incrível, afinal  estava de passagem na pequena cidade, apenas para pernoitar e seguir viagem pela manhã:  Lembro que passava um pouco das dez da noite, deitado no quarto do hotel daquela cidadezinha do interior de Minas, sem sono e nem um livro ao alcance, aliás, sempre havia alguma coisa no carro, eu estava é sem saco para ler.  Uma cerveja cairia melhor. Levantei-me e saí a caminhar pela  ruazinha escura e estreita. Uma cidade realmente muito calma, constatava.

À medida que caminhava, notei um burburinho crescendo gradualmente. Era o  povo concentrado na praça principal, passeando para cima e para baixo, praticando o que antigamente era conhecido por trotoir.  Para apreciar melhor o movimento, encostei-me no balcão de um barzinho e bebericava uma cerveja enquanto trocava amenidades com o solitário garçom.

Minutos depois, entra um grupo de jovens, descontraído e falante. Como o bar era demasiado pequeno, ficamos todos muito próximos e quando me dei conta, já interagia com a turma, apesar da diferença de idades.  Lembro-me bem quando ela chegou, louríssima, risonha, beijando alguns deles e apossando-se de um copo. Dezoito ou dezenove anos, calculei. 

- Esta está bem geladinha...   –Servi-lhe de minha cerveja.
Ela agradeceu com a cabeça e chegou-se mais para perto. No meio do falatório e do riso geral, tentei algum assunto com ela, sem sucesso. Só sorrisos.

- É muda.      –Socorreu-me o garçom, discreto.

Puxa, que loucura! Uma garota linda... eu tentaria até um namorico  ...Pensei machista, mas...   Por que não...?   Repensei.

Esforcei-me para me mostrar natural e toquei-lhe o braço. Um sorriso, dessa vez dirigido a mim. Exclusivo. Era toda bonita, olhos claros, o busto realçando adolescentemente sob a blusa. Como proceder? Eu pensava rápido... e instintivamente, com as duas mãos, traçando a silhueta de seu rosto sinalizei  que a achava muito bonita. Entendeu,  percebi pela resposta de seus olhos.  E com mútuos interesse e mímica, iniciamos um incomum diálogo.


 Em dado momento, olhei-a fixamente e indaguei, de modo bem pausado, qual era o seu nome.  Vilma, escreveu num guardanapo. E você?   Devolveu-me papel e caneta.

Assim permanecemos um pouco isolados do grupo, trocando gestos e anotações ternos. Tomando as suas mãos adivinhei um contato peculiar. Um estranho e agradável segurar de mãos. Suave mas entregue. Delicado mas total. Carência? Ficava eu cada vez mais interessado, curioso.

Seus amigos se retiraram em busca de outro bar mas ela agradeceu o convite e preferiu continuar ali. Eles, compreendendo o que se passava, riram  e se foram. Desse modo, ficamos mais um  longo tempo “conversando”, trocando  anotações e olhares.

Saindo dali, peguei o carro no estacionamento do hotel e partimos a procura do único motel da região. Na rodovia, ela apontou-me a lua de modo tão radiante que adivinhei felicidade em sua expressão. E ela, dando-se conta de que eu havia percebido, beijou-me ternamente o rosto.  
                         ......................................................

-É uma pena ter que continuar viagem.  É uma pena ter que despertá-la agora e levá-la de volta à sua casa...  Pensei um pouco e resolvi  deixá-la descansar mais algum tempo.  Enquanto isso tomaria um banho.

Ela dormia serenamente. Surda e muda de prazer.

                                                        

                                       --- 0 ---


Não lembro se era  sexta ou sábado, só sei que não estava com o mínimo ânimo para sair e encontrar com a turma, falar as mesmas coisas, rir das mesmas  piadas  ou acrescentar detalhes nas velhas  fofocas. Mas fazer o quê numa noite sem graça como aquela?  Um tédio.

Havia perdido o ano no colégio e este ano  agora, também não estava nada bem. Era quase certo que eu repetiria.  Pela segunda vez... que merda!  A minha mãe não descolava de meu pé, principalmente depois que  terminei o namoro  com o Mundinho. Quer saber? O Mundinho era um bobalhão... só queria saber de futebol, de torneio disso, torneio daquilo, taça não sei de quê, campeonato  de várzea, o cacete... Não ia mesmo dar certo.

Enfim,  resolvi sair de casa assim mesmo.  Àquela altura nem desconfiava que seria uma das noites mais interessantes em minha insípida vidinha.

- Vai sair novamente? Já não saiu  anteontem...e  ontem...? 

- Fazer o quê  em casa, mãe?  Nem a televisão tá funcionando... 


Encontrei o pessoal no Bar do Jeremias.  Estava todo mundo já  meio alterado, já tinham até fumado um.  De diferente,  só um coroa -de fora- que à primeira vista parecia mais velho do que  realmente era. Cara maneiro,  logo de saída  me ofereceu um copo de cerveja.  Percebi que ele queria se entrosar mas, tudo bem, parecia gente boa... eu só não estava muito a fim de conversas.

Como,   de vez em quando ele puxava assunto, pisquei o olho pro Jeremias e topei levar o negócio em frente.  Quando, outra vez, perguntou alguma coisa,  eu fingi que não era comigo.  Nisso,  o Jê  sacou e deu uma força na sacanagem  que eu estava aprontando: Disse que eu era muda. Pra quê, meu amigo? Aí é que o coroa ficou animado, excitado, sei lá. Os homens são engraçados...  Viu uma dificuldade e se empolgou. Conquistar uma garota  muda ... era um senhor desafio. Deve ter pensado lá no seu íntimo,  “vai ser diferente, comer uma mudinha...”.

E não é que o cara tinha um “papo” agradável?  Era escritor, editor, uma coisa assim, e arranjou logo um jeito de se comunicar.  Passou a escrever bilhetes,   perguntando
o meu nome, o que eu fazia, uma pá de coisas. E eu tirando o maior sarro, escrevi no papel  que me chamava Vilma, que fazia faculdade, há,  há, há.  Se ele soubesse...

O engraçado é que eu fui me entusiasmando com o seu jeito calmo, sua delicadeza, porque, fiquei pensando...  Ryd Naruj (Nome estranho...) acreditou que eu era muda, e mesmo assim,  está me tratando normalmente, como se eu fosse uma pessoa normal... Gente fina, pensei. E inteligente. O danado não me cantou para irmos pro motel; simplesmente  perguntou se o céu de minha terra era bonito;  se as estrelas podiam ser vistas; se de manhã tinha orvalho sobre as flores; se a lua ficava totalmente redonda, porque onde ele morava, na capital, havia tantos edifícios,  tanta luz elétrica e cartazes luminosos que não se via lua, nem estrelas, nem  orvalho.  Não se ouvia o farfalhar de galhos de árvores,  muito menos os passarinhos; nem se percebia o cheiro de grama. Era somente barulho de buzinas e cheiro de fumaça e asfalto. E mais:  só conhecia essas belezas através de poesias e de filmes.  Claro que ele estava mentindo, mas achei aquilo romântico. Era uma mentira muito romântica.

Concordei em sair de carro,  e passear pela redondeza,  e a lua -eu não havia reparado-  estava um espetáculo. Em casa,  estava tão  entediada que não percebera que era noite de lua cheia. Não deu outra, rolou uns beijos, umas carícias e acabamos dormindo juntos.     Foi uma noite maravilhosa.   Só não foi  p-e-r-f-e-i-t-a  porque  eu tive que me segurar; não pude extravasar, gritar, uivar  de prazer, como eu gosto.  Tive vergonha de lhe falar a verdade, de que não era  muda merda nenhuma; era faladeira até por demais.

De manhã, fingi que dormia enquanto ele se aprontava;  na verdade, estava em dúvida se abria o jogo ou não. Melhor deixar pra lá, resolvi; estava bom daquele jeito. O interessante é que restou dessa noite um lance muito legal:  descobri que existe mais de uma maneira de ser feliz. Dependendo da ocasião, até as palavras podem ser inúteis.
                                                        


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É... a lourinha era mesmo boa de cama; uma pena ser muda. Uma coisa não entendi:
Para quê  aquele celular no bolso da calça ? Seria só para mensagens?  Mas se era surda como ouviria o sinal de entrada de mensagem...? Estranho isso...

E o  Ryd continuou dirigindo e matutando...
                                        
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domingo, 14 de julho de 2013

 À MARGEM DO RIO EUFRATES - Crônicas

-17- 

AS  GUERRAS

Durante o tempo em que morei no Iraque, 1979 a 1984,  com um intervalo de 1 ano (1981) o país sempre esteve em guerra.  Historicamente com o vizinho Irã;  embora não possamos esquecer as contínuas escaramuças com  a região Curda que lutava por  sua emancipação.

Essas guerras, porém, nunca nos atrapalhou. Isto com relação ao desenvolvimento da obra e também do ponto de vista de moradia dos brasileiros; no dia-a-dia, no ambiente escolar e no social, tudo sempre correu normalmente. Não bastassem as Missas católicas e Cultos evangélicos aos domingos (sextas-feiras), também na época do Carnaval nós nos divertimos com bailes no Clube e pequenos  blocos nas ruas de nossa “vila” brasileira.

A despeito de  eventuais  voos   rasantes das esquadrilhas de  
bombardeiros  sobre a área residencial, o que nos assustava momentaneamente pois afinal o barulho das aeronaves era ensurdecedor, a vida seguia normal e  sempre transcorreu relativamente confortável.  Mesmo porque não tínhamos acesso  nem à TV local e nem aos jornais, obviamente falados e escritos em árabe!

É claro que nos causavam certa curiosidade quando, ao viajar a trabalho na obra da ferrovia, lá para os lados da Síria, cruzávamos com comboios militares. Eram grandes carretas, canhões, lançadores de mísseis,  e naturalmente, centenas  de soldados aboletados  em caminhões. Também nas pequenas dunas que margeavam as estradas viam-se aqui e ali ninhos de metralhadoras.

Certa vez, em passeio promovido pela  escola a Bagdá, a minha filha observou  um ônibus cheio de crianças exibindo fuzis e metralhadoras.  Uma cena singular que ela jamais esqueceu.
A única vez em que sentimos na pele os efeitos da guerra foi em  1980 ao tentar os vistos nos passaportes para voltar, de férias, ao Brasil.  Era obrigação  da  empresa  essa  providência  mas por típica  desorganização

brasileira,  nós  os interessados, tivemos que  nos virar e “correr atrás” das autoridades.   Naquela ocasião, enfrentamos tumulto na Embaixada e também no  Consulado, com muita gente querendo sair do país ao  mesmo tempo.  Eram reflexos da guerra com o Irã que se agravava.

Na segunda etapa de nossa estada naquele país (1982/84), o controle de passaportes e de embarques no aeroporto se normalizou. 


                                               
                                              -  F I M -

À MARGEM DO RIO EUFRATES - Crônicas

-16-

RIMAN, O MEU AMIGO IRAQUIANO

No setor de Segurança do Trabalho da obra, havia  funcionários brasileiros e árabes, sendo que iraquianos natos, só dois: Hassan e Riman que trabalhavam no Corpo de Bombeiros. Hassan, o mais jovem, viria a ser convocado para a guerra  com o Irã  e nunca mais o vimos.

Riman, por ser casado, foi poupado da convocação e ficou conosco até o final quando retornamos definitivamente ao Brasil, em 1984. Era um homem de estatura mediana mas de forte compleição física; um pequeno touro. Na fidelidade, um cão. Aos poucos fomos estreitando as relações e, a despeito de diferenças funcionais, culturais e  idiomáticas, tivemos uma convivência agradável.

Certo dia, convidou-me para almoçar em sua casa em Al Bagdadi (Pequena Bagdá) que ficava a 12 quilômetros do Acampamento Central. Exigia a presença de mulher e filhos. A sua família era constituída dos velhos pai e  mãe, esposa e quatro filhos. Como esperávamos, era uma casa modesta com quintal e um forno onde assavam os pães -apelidados por nós de “orelhas de elefante”. Em sinal de amizade e confiança a sua esposa, Madyha,  usava apenas abahia  dispensando o véu que deveria cobrir o rosto.

Foi um belo encontro e até uísque o Riman providenciara. O almoço, comumente servido sobre os tapetes, no chão da sala, fora arrumado dessa vez numa mesa e  cadeiras providenciadas não sei como. E talheres, o que era raro. A comida obviamente era a típica árabe: peixe (do rio Eufrates), frango, arroz, k’baba e legumes variados. De sobremesa, coalhada de leite de cabra e doces. As crianças se misturaram brincando e se comunicando perfeitamente através de mímicas e risos. O fato de uma de minhas filhas, de 8 anos, chamar-se Samira provocava grande  empatia; Akran, um de seus meninos que o diga.  Foi um belo dia/tarde.

Em reciprocidade, semanas depois  convidamos-lhes à nossa casa. Era incomum  que famílias locais tivessem acesso à área residencial do Acampamento. Fui buscá-los de carro em Al Bagdadi. Oferecemos um churrasco  -ficaram fascinados- no entanto,  a sua esposa -protótipo da mulher árabe- morena, olhos negros, recusou-se a sentar  à mesa. (Posteriormente, ficamos sabendo que a mulher árabe espera o marido se alimentar e só depois deve sentar-se à mesa).  Por  insistência nossa, alegando estar em território brasileiro, ela aceitou sentar-se à mesa; mas não se serviu de um grão sequer.  Sem chances. Só depois de o Riman e eu levantarmos é que ela almoçou.  Anoitecia quando fui levá-los de volta. Todos radiantes.

Três meses antes de findar o meu contrato, em princípios de 1984, a família retornou ao Brasil para que as crianças não fossem prejudicadas com relação ao período escolar. Fiquei solteiro durante três meses. Nesse período, o meu amigo insistia em que eu fizesse as refeições em sua casa,  como também  lhe desse  as roupas sujas para que a esposa as lavasse  ( recusei sutilmente as  ofertas pois, além de tudo, dispúnhamos de restaurante e lavanderia no Acampamento). Enfim,  um bom e saudoso amigo.


Em Maio, após as  despedidas, em sua casa, dava pena ver pelo retrovisor do carro aquele homem rude  e valente  ao lado do pai, acenando-me, às lágrimas.

Meu Deus, o  que terá havido com eles, depois daquela guerra imbecil e covarde ?!



                                                    
Abaia – Roupa preta, comprida.
Kababa:  Kafta (churrasco de carne moída, de carneiro)
                                           
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À MARGEM DO RIO EUFRATES - Crônicas

-15-

O  DESERTO


Por força de minhas atividades na coordenação da Segurança do Trabalho da empresa,  frequentemente  percorria os acampamentos das frentes avançadas:  Kms 280; 340, 450 e outros, cruzando o deserto.

Uma das curiosidades que observava no trajeto eram  as frentes de serviço desativadas: na medida em que a obra avançava, na área do acampamento desativado brotava  uma graminha verde, viçosa, testemunha que ali havia sido um ponto de abastecimento de caminhões-pipa. A água  era bombeada do Rio Eufrates que corria  em paralelo à estrada e servia para molhar, ou aguar no linguajar da obra,  as pistas de terra.

Nessas constantes viagens em certa época, diárias, sempre me perguntava o porquê de tantas pontes e viadutos, denominadas Obras Especiais, já que não existiam rios no deserto. Só mais tarde, ao final da obra,  pude observar que no auge do verão, em  consequência do degelo das montanhas do Norte  surgiam, da noite para o dia, uma infinidade de  riachos e rios de razoável correnteza,  em pleno  deserto.

As estradas de acesso às frentes de serviço eram extremamente precárias e o  asfalto ia caindo de qualidade até que, de repente, desaparecia de vez. Dali  em diante era só terra amarela com uma poeira fina, e que ao entardecer, confundia-se facilmente com o deserto. Os pequenos morros e dunas assemelhavam-se, repetitivos.

Certa ocasião, quando  dei conta havia me  extraviado da rota, “tô perdido...” pensei, enfiando-me deserto a dentro.  Por sorte...

...deparei-me com um grupo de nômades, com túnicas extravagantes conduzindo um bando de camelos (acho o termo cáfila  meio pernóstico...).  Estranhos animais os camelos, com  bocas sempre ruminando e mastigando vento,  e de seus maxilares desencontrados.
Os beduínos,  sérios e desdentados,  cordiais embora rudes,  me serviram maia  em sua tenda e me redirecionaram  para a estrada. Não sem antes me proporem um escambo de 3 camelos pela picape... Pena a minha garagem não caber os três  camelos...

Foi por pouco tempo, não mais que um par de horas,  mas o suficiente para sentir  medo e um sentimento de total impotência, quase pânico.


NOTA: O trecho acima –em itálico- foi uma fantasia (licença poética!!) calcada  em  lembranças de “As mil e uma noites”, enquanto dirigia  em infindáveis e monótonos retões.

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Maia -  Água